http://olivreiro.com.br/blog/2009-11-12-portugal-telecom-trecho-de-acenos-e-afagos-de-joao-gilberto-noll
Lutávamos no chão frio do corredor. Do consultório do dentista vinha o barulho incisivo da broca. E nós dois a lutar deitados, às vezes rolando pela escada da portaria abaixo. Crianças, trabalhávamos no avesso, para que as verdadeiras intenções não fossem nem sequer sugeridas. Súbito, os dois corpos pararam e ficaram ali, aguardando. Aguardando o quê? Nem nós dois sabíamos com alguma limpidez. A impossibilidade de uma intenção aberta produzia essa luta ardendo em vácuo. O guri meu colega de escola estava nesse exato minuto me prendendo. Seu corpo em cima do meu parecia tão forte que eu teria de me render. O que sentiriam os rendidos? E as conseqüências práticas, quais seriam? Contei de um colega cujos pêlos do pentelho —, aliás, com um futuro ruivo, começavam a nascer. Pentelho? Eu trouxe a novidade pronunciando por ignorância a última vogal como um “a”. Os pêlos apareciam primeiro na região da virilha, nas laterais, portanto. Ou mais embaixo um pouco, quase no saco. Nunca ouvira falar antes desse tufo encrespado a encobrir o sexo parcialmente. Na minha drástica compreensão, esses fios emaranhados deveriam coroar a escalada sexual. Coroar de algum modo que agora me fugia. O que viria depois da floração da pequena juba parecia ainda muito distante, se é que poderíamos contar com alguma outra grande novidade na genitália em botão. Acreditávamos os dois que a excitação de um corpo conheceria a plenitude com a chegada do pentelho. A luxúria adulta estava então lançada. Vivíamos padecendo no aguardo da bendita erupção. A auréola capilar, em volta do reinado genital, não emergiria apenas com a função de proteger o paraíso. A excitação preliminar vinha justamente da manipulação dessa macega, geralmente mais escura que os cabelos. Para alguns, os pêlos representavam o ápice da foda também. Tocá-los no início, para outros, seria um ato inspirador para o que se seguiria no curso do encontro. Ao atravessar o matinho cerrado, chegava-se ao centro pubiano, de onde se irradiavam os pontos mais lúcidos do deleite físico. Faltava saber agora como manusear o pentelho para se tirar partido de sua ascendência sobre a carne. E nós dois aqui no chão do corredor jurávamos, calados, inimizade sem fim. Então o guri que me esmagava desenhou o gesto de me estrangular e então enfiei a mão por entre os corpos e peguei com gana o pau dele duro. Foi o que bastou para ele retirar seu peso de cima do meu corpo ainda franzino. Soltos agora daquele enrijecido abraço, suspirávamos em quase gemidos. O ruído aflitivo da broca não cessava. A possibilidade de sermos pilhados pelo dentista mais dramatizava o sentimento meio fosco entre o gozo e sua imediata negação. Para fugirmos do dilema, lutávamos, lutávamos sempre mais, rolávamos. Fomos abaixando nossas calças curtas e ficamos de joelhos, um de costas para o outro. Essa posição, talvez, servisse para nos camuflar um pouco diante de algum brusco olho com bom trânsito no prédio. Foi assim que lançávamos nossos ferrões de forma branca, para amaldiçoar aquelas sensações que não teríamos mais como revalidar pelo resto de nossas biografias. Nunca mais sentiríamos tanto tesão por outra matéria tão improvável quanto a nossa. Mesmo sem ainda condições de ejacular, em razão do organismo ainda verde, dessa tarde restou um deleite naufragado, deleite que nunca mais consegui atiçar. O amasso oblíquo de hoje não deveria interferir nas aulas de amanhã. Os nossos pintos se antecipavam à idade adulta, subiam como gente grande, mas ainda não chegavam à metade do tamanho de um peru maduro. Quanto à ejaculação, por enquanto esse item perdia para a força catalisadora do pentelho. Desconhecíamos a aparência do líquido que nos acompanharia pela vida toda. Sabíamos que o sexo deveria ser feito entre um homem e uma mulher e que dessa luta em meio aos lençóis se gestaria a criança, essas crianças correndo por tudo como nós. O nosso abraço belicoso fora uma situação que só poderia ter sido vivida porque se desgarrara da história principal. O vento acabou varrendo-a para o lixo. Éramos moleques que se reinventavam a cada sinal da puberdade. Meu pai me dera um livro sobre as coisas do sexo, cujo autor, João Mohana, pontificava como padreco que era. Nunca punhetei tanto quanto durante a leitura desse manual. Várias páginas manchadas pelos jatos de minha grande novidade da época —, sim, o sêmen. O fato de se estar ali, de pinto duro, não poderia ter sido previsto, mas agora acontecia, e ninguém se dava conta se era um disparate ou simplesmente uma iniciação ao transe. Comparávamos nossos cacetes: eu com uma glande ainda renitente para sair do ninho do prepúcio, e o meu colega exibindo um pau com a glande liberta do prepúcio, glande orgulhosa em tons de rosa e roxo. Contávamos com a ameaça de o dentista abrir a porta a qualquer momento e nos flagrar no árduo impasse carnal. O perigo constituíase num ingrediente tentador a mais para um novo arranque do erotismo, naquela dispersão erógena da infância. Tudo doía, pois não havia gozo que pudesse persistir só para si mesmo, sem transbordar em alguma instância aflita. Parecíamos mais uma vez dispostos para a briga. Naquele ponto eu já sabia: a animosidade seria abastecida de novo pela atração. E o meu amigo sabia, ou era bronco de pele? Embora investido de seu corpo tanto quanto eu, sua ficha talvez ainda não caíra para o fato de que aquele abraço túmido era prazer e que a partir dali não nos cansaríamos mais de repeti- lo. Vício. Não nos perdoávamos justamente em razão do pendor que cada um sentia pelo outro. O lusco-fusco do corredor mostrava-se cúmplice daquilo que queríamos desbravar e matar ao mesmo tempo. A permissividade evocada pela penumbra, no entanto, não bastava para pôr fim à nossa difusa desavença. Tanto nos esfregávamos brigando que nossos corpos ficavam aqui e ali bem rubros, unhados até. Em certos pontos do meu corpo apareciam profundos arranhões —, um deles até tirava sangue. Parecíamos répteis serpenteando, deitados de lado, agora frente a frente. Onde o corpo de um recuava, o do outro avançava. De repente, aflito, trêmulo, o guri me trouxe o cu para perto da minha boca. O cu cheirava, um cheiro de intimidade abusiva, mas não havia como desdenhar essa intimidade, pois era justamente ali que eu viajava inebriado no mais secreto dele, sem nada pedir ou oferecer, sem nada pensar. Eu solenemente escondia dele o meu envolvimento com seu cu. Era justamente ali que a vontade de se misturar mais me tomava. Cheguei bem perto e lambi. Ele estremeceu. Aquilo que ele pretenderia com certeza esconder da higiene adulta, aquilo era uma espécie de sagração da inconveniência, um verdadeiro ópio aos aspirantes do gozo. Vinha-me então esse gosto condenado na boca, gerando mais e mais excitação, o transe até. Preferia estar ali, com o cu do menino na cara, a estar com minha fuça esterilizada pelos cadernos do dever diário. Juramos não contar essa tarde a ninguém. Nunca. Nós a enterraríamos um pouco em cada um e, quando estivéssemos crescidos, a imagem da luta no chão frio já estaria esfarelada, sem que soubéssemos reaver os fragmentos. E nos fizemos de túmulo, para enterrar de vez o brinquedo que cada um criara no corpo do colega. Corri para a rua abandonando o garoto com seu cheiro de entranhas. Esse menino sempre dizia que quando crescesse seria engenheiro. Eu não falava nada. Encostei-me tantos anos depois num poste, para fumar mais um cigarro ao fim de um dia puxado na minha vida de massagista, lá pelos idos de minha alta adolescência. Precisava trabalhar, meu pai passava por sérias dificuldades. A memória do garoto que me confiara seu território mais secreto ocorreu-me do aceno de uma imagem quase invisível, durante a última massagem do dia. Era verão, e, ganhando um pouco de refresco do ventilador ruidoso, toquei no novo corpo que se apresentava às minhas mãos. Era de um homem, e aquele homem, eu não sabia a razão, me reintroduzia na luta teatral no escuro do corredor, havia alguns bons anos. Sim, seus traços eram impressionantes. De fato, lembravam o guri… Perguntei-me se a pele não vinha justamente dos poros do amigo que planejava na infância ser um engenheiro, próximo e distante. Aquele corpo entregue às minhas mãos lembrava a prosa intestina do corredor escuro. Aquele corredor acolhendo o ruído arrepiante da broca do dentista. A poesia vinha do silêncio mascado que o meu cliente de massagem me dedicava… De repente ele pediu licença, tirou o chiclete da boca, pediu um cinzeiro para depositar a goma, e a partir daí ele veio a sugerir mais do que nunca o ninho penumbroso dos meus tem- pos de menino.Tudo poderia estar imerso em seu silêncio, tudo, até alguma pane em sua identidade. Tudo poderia estar imerso em seu silêncio, sim, até a perturbação que minhas mãos produziam em sua pele. Uma confissão queria sair de ambos, mas não sentia a força de passar da boca atrás de um norte, para então sumir de nosso alcance. Curvei-me e o corpo disse é aqui que dói. Como?, indaguei… E ele pôs minha mão em sua nuca, olhando-me meio súplice. Um pouco de mim se esvaía de cansaço. Fui fumar um cigarro no café da esquina. Minha mãe entrava no bar a me chamar para o velório da prima Cida, que enfim se fora com a misteriosa doença que a todos abateu. A prima Cida estava toda de branco no esquife. Eu a olhei um pouco, como faz todo mundo ao chegar a um velório. Sua mãe passara esmalte rosa na menina. É quando tentamos extrair da pele amarelada do defunto a autonomia antiga de sua fisionomia e expressões. A mãe da morta, a irmã mais velha de meu pai. Olhei essa tia. Parecia proclamar surdamente que a força vinha dela, a mãe da morta, a mãe de cada um, a mãe de todos. E que a filha não levaria junto a paixão materna das noites mal-dormidas, em vigília à agonizante. A mulher não lacrimejava. Minha prima agora morta sorria para mim da porta da casa de bonecas nos fundos do quintal. Não tinha mais de 11 anos e já com muita maquiagem da mãe. O vestido transparente de minha tia deixava à mostra uns peitinhos que eu diria já intumescidos diante de meu agito em vésperas da puberdade. Ela me levava sempre para a casa de bonecas nos fundos do quintal. Na época eu só pensava em foder, mesmo que até ali não tivesse enfiado meu pinto duro por buraco algum. Pela idade, ainda não me era facultado ejacular. No máximo um lubrificante saindo ralinho pelo meu grato pinto. Naquele tempo, já desconfiava de que seria um adulto fa- mélico por sexo. Sentava no chão da casinha de bonecas, a priminha de pé levantava a saia, afastava a calcinha, eu passava o dedo por aqueles laivos de delícias. Metia o dedo um pouquinho mais. Ela gemia então, fremia, e encharcava meu dedo em riste em seus precoces fluidos vaginais. Eu estava ali com meu pequeno pau túrgido, mas ainda sem condições de lançar sêmen e gerar. Estávamos no mais completo escuro. Eu levantava e botava a mão dela em meu pau em flor. Preferia o pau do Raul, um amiguinho meu, pois era circuncidado —, ele o exibia diante do mictório de aço da escola, como se o corte da sobra de prepúcio já lhe emprestasse um desígnio adulto, completo, superior. Sua glande parecia a ponta de uma arma prestes a mandar o projétil eletrizante, enviado aos destinatários merecedores da pujança. Mas eu e o outro amiguinho continuávamos no corredor escuro, onde a broca do dentista arrepiava. Quando a sessão de estremecimentos vários terminava na casa de bonecas, eu ia ao quintal para aplacar um pouco tanta sanha carnal. O sol dourado da hora querendo iniciar seu declínio encorajava-me de modo intransitivo, pois no instante eu não tinha missão solar nenhuma a reter ou propagar. Aquela cor do ar me inspirava sem objeto nem nada. Sei que o contato no luscofusco agudo do corredor, tempos atrás, em que eu e o colega nos tocamos para aprender a dar ao corpo o seu melhor, sei que desse encontro não me esqueci mais. Interessante, ele parecia bem convicto diante de seu futuro adulto: seria um engenheiro. Habitante daquelas horas afogueadas, depois de tocar na priminha na escuridão da casa de bonecas, comecei a ter receio de perder os corpos que comigo se embrenhavam pela aventura no breu. Soltei um peido. E me pus a correr envergonhado. Tinha impressão de que acordava depois de um longo sono. Eu crescera e era um homem apaixonado pelo corpo que eu ainda não tinha acolhido. Agora, a pele seria a de um colega de seminário que não me dava a mínima. Ou dava? Ele deixaria o seminário para estudar medicina. Ouçam o bater do nó de meus dedos na porta de seu quarto. Ele abre, já é noite. Pergunto se posso entrar um pouco para lhe contar. Ele dá o espaço para eu passar. Sento numa cadeira com o encosto e assento de palha, igual àquela no quarto de Van Gogh. Ao sentar senti um enorme tesão pelo seminarista novinho como eu, bem moreno, que sabia usar as mais belas palavras da língua portuguesa. Quando ele falava, como agora, eu sentia a minha boca salivar, se inundar de saliva, a ponto de um pouquinho do cálido líquido espumoso transbordar pelos cantos dos meus lábios feito convulsão. Dessa vez o seminarista contava de sua infância em Tapes. Da vida no campo com as ovelhas, de seu romântico pastoreio em tantas invernadas. Era filho de fazendeiro. Confessava preferir fazer os deveres da escola junto às ovelhas. Tocava flauta doce em meio aos bichos, às vezes com uma capa de lã grossa para se proteger do Minuano. Ia contando e eu admirando seu peito apenas entrevisto entre as águas do casaco de pijama. Ia contando e eu sentindo meu pau se intumescer por baixo de tudo, tudo. Ele ia contando sempre, e eu me distanciando para o esconderijo da noite, entre mim e mim próprio, tendo as trevas como a matéria envolvente ao meu pobrinho gozo. Mas antes de sair para meu quarto, me atrevi e fiz um agrado em seu ombro —, pousei a mão em cima dele e, no instante de afastá- la, um leve apertão serenou tudo o que eu não conseguira empreender assim tão próximo. Fui para o quarto sentindo meu coração bater calado: independente do que fizesse da vida, a máquina dentro de mim não falharia antes do tempo. Foi pensando nisso, por aquele corredor gélido, que che- guei a meu quarto sem mais acreditar em Deus. A engrenagem do meu corpo cairia em desuso só quando tivesse de ser. Talvez num fim de tarde, antes do jantar. Quem sabe eu durasse até a manhã seguinte, talvez até o sol do meio-dia. E, enfim, eu era ateu. Não fazia mais parte de um plano cósmico regido por um déspota. Mas por enquanto era bom que ninguém soubesse disso, pelo menos no seminário. Tinha interesse de ali ficar um tempo mais. A partir dali, abriria a boca com repugnância para receber a comunhão. Mastigaria aquela casquinha anêmica triturando todas as crenças d’além corpo. Se a hóstia sangrasse me fecharia no banheiro. Cuspiria no vaso parte da hemorragia. Viriam coágulos até. No entanto a minha estada no seminário estava garantida. Precisava fugir dos apertos financeiros constantes de meu pai. Ao fechar a porta do quarto faltou luz. Tomei um copo d’água no escuro. E depois sorri. Esse sorriso eu destilava das vísceras e dedicava ao zero a partir do qual minha vida vingara e florescera. Minha mãe dormia a meu lado na cama de casal, onde um dia meu pai introduzira, espero que acalorado, a semente que me fez. Falei à minha mãe que temia meu pesadelo se transformar em biografia. Nesse pesadelo eu corria nu de uns faróis a me perseguir, como em Pixote que fui ver depois. Minha mãe punha minha cabeça sobre o peito. E eu já era grande. Na rua, havia sempre um homem de óculos escuros. Eu não suportava então que seus olhos me seguissem por detrás de suas lentes prateadas, foscas. Não sabia destacar de forma clara o teor da coisa a me desabonar. Mas sabia que, onde quer que eu fosse em ambientes públicos, havia alguém que não me queria solto. A questão era que eu tinha uma consciência abalada pelo abuso do meu próprio pensamento. Ele sobrecarregava-a, deixando- a infestada de abutres inequívocos. Eu queria ser Deus, isso estava claro, e desconfiava de que, para seguir a carreira divina, seria preciso uma imaginação teológica com outra face. Como por exemplo sair do seminário, do armário, me entregar ao roubo, ao crime, às ofensas carnais, ao vício e daí não mais retornar. O diabo era doce. No ermo da figura peçonhenta quero ir como mulher. Pois faço idéia das artes demoníacas do amor na modalidade feminina. Eu precisava mesmo era de reconstruir uma família, refazer o caminho de meu pai. Naquele dia quis recuperar a saúde, deixar de tanto sofrer. E decidi contar a alguém. Fui pedir ajuda ao meu amigo de todas as horas, o engenheiro agora já homem feito, por quem eu tinha uma estima exponencial. Era um dos poucos cidadãos por quem eu não nutria um sentimento de raiva perpétua. Regulávamos em idade. Num domingo ensolarado, à tarde, fomos à praia do Guaíba chamada Belém Novo. Ao tirarmos a roupa para ficar só de calção, entendi o motivo de querê-lo a meu lado por toda a vida e um pouco mais. Caminhando agora a assobiar para o seu escritório, ia divagando sobre a ordem diurna que então me oprimia. Eu não freqüentava mais meus afazeres. Cada turno exigia de mim suas tarefas próprias e mais um monte de outras. O meu lixo se acumulava. Sacudia a cabeça até me turvar e poder dizer não sei, não sei. Nesse vácuo, sentei-me em frente à sua mesa alta, muito alta. Móvel escuro, exibindo falhas de grandes lascas. Sim, estávamos em seu escritório. E ele mais uma vez se revelava lindo. Por que te tenho aqui?, ele pergunta. Após lhe contar a respeito dos males, ele me convida a sair para ensaiar novas vias. Novas vias ou novas vaias?, perguntei de soslaio. Ele me deu um tabefe na cabeça, e quase quis sair no soco com ele, até nos ferirmos e nos abatermos e um curar o outro, amém… Como se mostrava bem mais pragmático do que todos de nossa geração, eu tinha alguma esperança em seus serviços. Fomos ao cinema. E durante o desenrolar do filme nos olhamos no escuro cara a cara, e cada um viu no outro, tenho certeza, a substância que faltava. Só isso? Sim, nada mais que isso. De volta aos corredores do shopping, mirei os olhos de um segurança negro e lhe perguntei, aflito, trêmulo, se não queria ser meu guarda-costas. A partir daquela tarde eu queria escrever uma outra história. O melhor seria começar pelo blefe. Falei ao segurança do shopping que eu era um empresário da construção civil. Que a construção civil atravessava uma excelente fase. Que precisaria de sua guarda das oito da manhã às oito da noite. Já tinha outro homem em serviço durante a noite e a madrugada. Enquanto o corpulento pensava na resposta, levantando uma das sobrancelhas, a meu ver, em sinal de malícia, vi que meu amigo engenheiro tinha desertado do ambiente para dar mais espaço ao exercício do meu desassossego. O segurança se apresentava como receptivo, mas, logo que dava, pegava um atalho para voltar à rocha em que atuava. Senti o hálito dele, em versão framboesa. Imaginei seu destemor no ato de descobrir os mal-intencionados. Foi só ali que me dei conta de que eu tinha passado do filme para mim mesmo naturalmente, como se entre o espetáculo e minha vida bruta não houvesse um hiato. Eu atravessara do cinema para os corredores do shopping sem notar qualquer fronteira entre os dois pólos. Com certeza, se eu não lhe fizesse a tal pergunta (quer ser meu guardacostas?) e fixasse meus olhos na cor esverdeada de seus óculos escuros, ele talvez já tivesse me levado a uma sala escura de onde ninguém saía de graça. Alguma coisa era preciso deixar lá dentro, a honra quem sabe, o cabaço talvez. O meu amigo engenheiro deveria ter farejado o meu talento para dialogar com essas figuras sempre de prontidão nos lugares lotados. Da força do meu distúrbio em face dessas presenças, eu destilaria para elas a gana das fabulações. Quem eram? Eram figuras a falar no rádio de serviço não se sabia com quem, com certeza alguém que, através das câmeras, lhes ditava o caminho a seguir, a quem abordar, inculpar, punir. Não poucas vezes o aparelho silenciava as mensagens incompreensíveis, montadas umas nas outras, e passava a ecoar apenas ruídos arranhando peles sensíveis, crispando nossos ouvidos já plenamente atordoados por tanta crispação. Bem próximo daquele negro bonito (embora parrudo demais para meu gosto), bem próximo dele senti com fulminância que ele poderia ser amado até cair exangue na relva. Talvez gozar para ele fosse apenas questão de engolfar alguém e mais nada, sem qualquer intróito. Talvez gozar para ele fosse apenas uma enganação simultânea ao vômito do falo. E com a sorte de perceber que já estava molhado no púbis e liberado da tarefa. Quando me afastei um pouco e lhe sorri, ele já estava interessado no jogo que poderia ser acionado entre nós dois. Ficamos de nos encontrar ao fim da tarde. Onde, onde mesmo?, perguntei-me já a caminho de casa. Qualquer cantinho serve para encontros insustentáveis. Após esporrearmos um no outro, não teríamos mais nada para dividir. Se dependesse de mim, contudo, eu queria foder com todos os homens do mundo e com meia dúzia de mulheres, mas naquela época de crise pessoal, o certo é que andava meio brocha. Alguns poderiam argumentar: e o que você faria com esse segurança que precisasse do teu pau duro? Foi aí que estremeci parando na esquina. Verdade, o segurança negro ignoraria o meu pau. Não sei, não, nunca se sabe, nunca se sabe… Mas, enfim, ele então me comeria? E eu lá tinha cu para tamanha incursão? Atravessei a rua sentindo que eu precisava muito do meu amigo engenheiro. E fui ao encontro dele em seu escritório seboso. Sentei diante de sua mesa cheia de lascas e ele me contou: vou me encontrar daqui a pouco com um amigo atracado num navio no porto. Vamos? Navio no Guaíba?, perguntei. Navio, ele respondeu correndo em direção ao cais, me deixando atrás a lhe implorar, calma, calma, guri! Enquanto corríamos eu ia experimentando antecipadamente o encontro com o segurança, encontro que eu deixaria de viver no fim da tarde, por estar seguindo as histórias do meu amigo engenheiro, por quem meu coração não sossegava. Lá ia eu de novo arrastado por seu avassalador magnetismo. Com o segurança eu atuava então num teatro latente, mas que jamais fora montado nem nunca o seria. No primeiro ato tiro a roupa imaginária diante do parrudo. Ele tem um pequeno acesso de tosse. Espero. Sento-me abrindo um embrulho do meu corpo inteiro. O segurança negro se despe. E a imagem do desembrulhar cai perfeita aqui também. Deito no chão duro, os cisquinhos do piso espetam minhas costas e bunda. Ele vem por cima e goza. Adorei que sua ejaculação instantânea impeliu-o a sair de cima de mim num tempo mais que célere. Nunca mais vi o segurança, nem na real e nem na imagem. Mas qual não foi meu espanto ao avistar no Guaíba o lombo de um submarino alemão! Parecia meio estropiado, com certeza já vivera várias batalhas. Mas qual era a minha informação sobre submarinos? Nenhuma. Parei no cais, boquiaberto.O meu amigo engenheiro, a meu lado, me apresentava aquele brinquedo de tamanho natural. Pensei em crescer para estar apto a uma aventura. Até lembrar que eu já estava adulto, e havia alguns anos. Desde a adolescência, o meu amigo engenheiro, mesmo com suas reticências de praxe, me aplicava admirações inaugurais a cada dia. O certo é que nós dois já éramos adultos. E estamos hoje lado a lado, nesse porto quase fantasma da cidade de Porto Alegre. No cais, o lombo de um submarino alemão. Ele assoviou grave e possante e de dentro da carcaça escura, certamente de uma portinhola horizontal, surgiu a cabeça de um sujeito barbudo, um tanto grisalho. O meu amigo engenheiro contou que o cara era alemão, nascido e criado na mesma região de meus ancestrais, que eu ia ver logo de quem se tratava. Nunca soubera disso, mas o engenheiro parecia falar alemão. O imponente bicho aquático chegouse para mais perto, e o alemão barbudo nos convidou a entrar. Passávamos mal e mal pela portinhola horizontal, e éramos logo instados a descer deslizando por uma barra de ferro bem lisa. Lembrei de alguns musicais da Metro, com os dançarinos deixando-se fluir pela barra dourada. Era o protocolo inicial para sermos convidados formalmente para a visita ao ventre da embarcação? Os ajudantes desse mistério aquático pediam que assinássemos o livro de presença. Que o livro ia para a sede da ONG em Berlim. Qualquer coisa eles entrariam em contato. Qualquer coisa? Entrariam em contato? Esse aceno poderia ser promissor, embora eu não compactuasse com aquelas evasivas marítimas. O dono das informações iniciais falou em português, pois era de Diamantina e vivia no submarino na condição de cozinheiro. Desde que o convite fosse feito para mim incluindo nele o engenheiro, eu o aceitaria, mesmo que eventualmente desvantajoso para minha pessoa. Colocávamos agora uma outra barra entre as pernas semidobradas, e ao fim do deslizamento nos víamos num espaço cor de bronze, para lá de austero. A bem da verdade, horripilante. Engoli em seco e perguntei a meu amigo engenheiro o que seria de nós naquelas vísceras marinhas, eu então sem poder travar qualquer conversa com a esmagadora maioria de fala alemã. Ué, mas até agora eles só falaram inglês, ele asseverou meio enfastiado com minha onda fiteira. De fato, ele tinha razão. Esse meu amigo arcaico pegou minha mão e me conduziu a uma câmara iluminada por velas. O recepcionista e mais outro alemão entraram no aposento conduzindo uma enorme cama de rodinhas com lençóis revoltos, como se um alguém ou vários tivessem acabado de usá-la. Era do tipo leito hospitalar. Ao passar por mim senti uma barafunda olfativa cujo cerne, no entanto, era bem destacado —, algo inóspito e seco como um macho. A guarda da cama em bronze exibia linhas sem imaginação, desiludidas. Quando a cama passou por minhas narinas, de verdade, o que verifiquei foi seu fedor. Perguntei-me o que estariam a fazer em Porto Alegre. O engenheiro contou que agora iríamos dar um passeio de submarino até a saída para o mar. Passeio de submarino? Mas como? Permanecer ali era como eu ficar em casa à noite, sem janela, e com várias lâmpadas queimadas. E se não nos soltarem mais?, suspirei em surdina. Não seria de todo mal, mas eu achava melhor não. O engenheiro mostrava uma total familiaridade com a excursão submersa. Levariam- me até o mar e de lá sabe Deus para onde. Aquela câmara enorme e subaquática, vedada ao mundo externo, cheirava a secreções já divorciadas do labor libidinal. Secreções sem alma, azedas, indigestas. Se eu conseguisse na embarcação prazeres interditados na província, se conseguisse deleites carnais inventivos, dar-meia por satisfeito. E nessa onda, que me levem então para nunca mais voltar. Afinal, o que eu ganhava vivendo em Porto Alegre, com uma fome impossível e me fingindo de saciado? Foi aí que reiterei para mim mesmo, pela enésima vez, que o meu amigo engenheiro era um homem bem interessante. Tinha feições grosseiras. Aliás, como quase todos os homens. Desses tra- ços nada sublimados vinha uma promessa animal. Olhei para o capitão alemão e seu ajudante de ordens e entendi que a folia estava prestes a eclodir. Não me interessei muito pelos alemães. Eles pareciam oficiais decaídos, sem escolha, aposentados à força, antes da hora, e vivendo dos proventos de alguma ONG. Olhei subitamente encantado para o meu amigo engenheiro. Sim, pela milionésima vez. Era meu amigo de longa data, quando se podia andar de madrugada pela Rua da Praia e sentar num banco da Praça da Alfândega. Acompanhava-me naquelas peregrinações noturnas, em busca de algo que ainda estava longe de se anunciar. Na época ele tinha pinta de assexuado, mas quatro, cinco anos depois veio a namorar uma garota moradora do bairro Floresta, com quem ia às matinês dominicais no Orfeu, Presidente, Eldorado, Ipiranga. Encontrava os dois geralmente em matinês no cinema Colombo, outro na Floresta —, uma sala exibidora dos musicais da Metro. Ele nunca casou. E eu não soube mais da existência de outras mulheres freqüentando sua pele morena, de poucos pêlos. Naquele tempo, a minha roda de companheiros da noite gostava de cantar em prosa e verso as delícias presumíveis de meu amigo engenheiro. Trata-se de um enrustido, diziam. Passávamos as noites no então Bar “Torpedo”, de um italiano conhecido da turma, situado nos arredores da Praça da Alfândega, na época uma praça razoavelmente cândida. Nos considerávamos o que então se chamava de “entendido”. Sempre gostei dessa palavra, pois dava a idéia de idílios secretos, só para iniciados, vividos nos subterrâneos de certas madrugadas. “Entendido” poderia designar também aqueles que na claridade do dia eram vistos como machos integrais, noivos até, acima de qualquer suspeita. Mas nas horas submersas lá iam provar do pote ansiado. Todos ali éramos “entendidos”, amantes e peritos do próprio corpo. E ao pronunciar essa palavra, vinha um gosto de ousadia, destemor, e de abertura a um universo de ágeis sutilezas, de filigranas maliciosas, onde se poderia usufruir algumas das vanguardas eróticas da época. Havia futuro nesses círculos. Todos aprendiam as artes da astúcia, para que fôssemos não só aceitos, mas também focos de desejo da impronunciável confraria. Enfim, agora nos encaramos mutuamente com alguma sabedoria, sem rodeios nem pressa, enclausurados no submarino alemão, certamente sucata da Segunda Guerra. Ali eu repentinamente comecei a enfrentar o meu amigo engenheiro como quem dissesse: enfim chegou a nossa hora. Aos poucos meu corpo foi ficando erógeno da cabeça aos pés e, tenho certeza, o dele também. Nossos cacetes experimentavam uma pulsação inigualável. É aquele instante em que você sente o fenômeno no púbis do outro, e o outro em você, sem que precise baixar os olhos para conferir a região genital de ninguém. Essa dilatação tépida transparece já na cara, nos olhos, nos lábios. O corpo todo vira sedução e você quer morrer se o ato não vingar. O núcleo mínimo do tesão vai se firmando pouco a pouco, no escuro, no lado de dentro da braguilha. Você, seu dono, já o ganhou. Agora é só prosseguir e desaguar. Nós dois já vivêramos o prenúncio desse ato inúmeras vezes. Só que sempre com um aborto. E a cueca toda babada. Transpirávamos às vezes, muito, a ponto de seguirmos, um no outro, as manobras de gotas se desprendendo dos lóbulos —, brincos em furtiva fuga de seu próprio poder de adorno. Arfávamos, queríamos morrer de excitação. E nada. O expediente tinha se encerrado. Os dois personagens então se distanciam, mesmo tentados a mirar a virilha esquerda do vulto em frente. Frustrados, emudecem a linguagem dos corpos, tornam-se novamente impermeá- veis a tudo o que ultrapassar as trocas sóbrias e sucintas. Alguém acionava a nossa coreografia? No entanto cada coisa em mim ardia, cada coisa se sensibilizava para o toque alheio e inaugural. Levantei a mão para pousá-la no corpo de meu amigo. Era só chegar ali e provar das labaredas de sua pele. Pele que eu fora obrigado a desconhecer por aqueles anos todos. Com a mão assim no ar, enquanto ele parecia observá-la, expectante, com minha mão assim ouvi o comandante do navio trovejar seu assustador alemão para dizer alguma coisa que, para minha surpresa, meu amigo engenheiro entendeu. Ele talvez fosse um germanista, escondendo de mim por décadas esse tesouro inútil. Agora eu via que o conhecimento dos dotes germânicos tinha alguma utilidade. Talvez eu estivesse a ponto de descobrir as artes desse saber. Ele e o alemão pareciam cultivar uma amizade imersa em si mesma, contrária aos olhos de fora, e estavam ali enfim para oficializá-la no fundo dos fundos das águas. Não havia oficiante, eles mesmos se coroariam como marido e mulher. Quem seria quem? Uma cerimônia simples, um tanto tosca até. O comandante alemão explanava conteúdos imediatamente traduzidos pelo meu amigo. Eu não seguia o discurso do alemão, mediante a tradução do engenheiro, porque estava sofrendo de um acachapante ciúme. Depois desses anos todos, recuperava o sentimento de que eu era de fato brutalmente apaixonado por esse amigo engenheiro. Agora, quando chegávamos à beira de colher o feitiço acumulado de um para o outro em tímida ardência, ele vinha e me apresentava o amante alemão. O meu amigo engenheiro, um mestiço levemente azeitonado, me puxava a mão para que eu entrasse em definitivo na câmara, onde cinco ou seis rapazes se postavam aparentemente à nossa espera, para iniciarem algum rito. Foi quando ouvi um ba- rulho típico dos velhos projetores de filmes. E sentando ao lado do engenheiro, por quem enfim já me sentia mais uma vez mortalmente apaixonado, após levar a paixão por décadas em estado de larva, sentando vi que projetavam um filme acerca de certas milícias ambiguamente nazistas. Essas milícias noturnas incendiavam bancos judeus, livros, teatros, tudo. Mas depois do serviço se metiam em buracos. Dirigiam-se a locais debaixo de pontes, ruelas úmidas sem saída, esgotos habitados por ratazanas ou homens com desejos inexprimíveis e muitos hotéis de orgias lacerantes. Aventuravam-se pelas madrugadas sempre no intuito de explorarem um o corpo do outro. Todos de quepe, com a suástica frontal sobre a aba. Na tela viam-se caralhos monumentais saindo de braguilhas sujas de sangue, vômito e porra, claro. Viam-se franguinhos adolescentes chupando o pau do coronel na farda de gala. Esse militar, quando não estava sendo sorvido pela garotada, inspecionava com galhardia as atividades incendiárias. Olhei para o perfil prodigioso de meu amigo engenheiro e lhe cochichei a minha dúvida sobre o sentido dessas ocorrências no submarino alemão. Aquele filme era de ficção ou um documentário da Alemanha de hoje? De hoje, não? Ele bateu na minha perna como quem dissesse: agora não. Pensei meio desvalido para onde íamos àquela noite, se é que noite teríamos. Eu bem poderia estar àquela hora com o segurança num simpático hotelzinho da Duque de Caxias. Que brinquedos indescritíveis poderíamos fabricar na cama ou no chuveiro do hotel? Constatei que eu era um prisioneiro. E ser prisioneiro debaixo das águas é sofrer de uma claustrofobia ao cubo. Perguntei a um rapaz de pé atrás de mim onde era o banheiro. Ele não entendeu, evidente. Fiz o gesto de abrir a braguilha, o de tirar o pau para fora e mijar. Ele sorria e olhava para a minha pélvis com um ar conhecido, de quem percebe que o melhor da festa ainda está por vir. Então perguntei a meu amigo engenheiro se sabia onde ficava o banheiro. Ele comentou alguma coisa a seu parceiro e logo veio a mim apontando uma porta logo ali. Numa das laterais do espelho havia a foto de um rapaz loiro e nu. Abaixo da foto, sobre um papel colado, viam-se várias assinaturas, na sua maioria de nomes alemães. Como se estivessem todos avalizando a beleza incontestável do rapaz. As assinaturas todas já tinham passado pelas delícias do jovem comandado? O rapaz tinha lá seus trunfos diante de quem andava numa seca carnal. Ele aparecia de lado. Uma lateral de bunda respeitável. O pau enorme semi-rígido. A semi-rigidez emprestava ao garoto certo mistério. Olhando a foto, eu me sentia como alguém que acabara de foder, quando surpreende o jovem parceiro urinando, pronto para outro encontro não mais que casual. Espiei a cesta de papel higiênico e vi lá dentro uma bandeira alemã ensangüentada. O amarelo até que combinava com o vermelho sangüíneo. Ao sair do banheiro, onde nada fiz, talvez resultado da tensão, verifiquei que a tripulação vivera nesse intervalo um embalo daqueles. Tinham aproveitado minha ausência. Que achava ter sido absolutamente breve. Mas não. Independente da extensão de meu desaparecimento no banheiro, o fato é que, nesse ínterim, a tripulação e os visitantes enfiaram a mão pelas tocas dos corpos e caíram de boca naquelas exuberantes postas de carne. O ar cheirava à cocheira. Meu amigo engenheiro estava nu como os outros e todos traziam seus caralhos vencidos, quando muito no pinga-pinga de sêmens já usados. Vi que no prepúcio circuncidado de meu amigo havia uma tatuagem e essa tatuagem me atordoou: uma ínfima abelha. Ele deveria fazer parte, havia algum tempo, daquele clube marinho que pretendia me excluir. Aquela confraria, que tinha como objetivo o de experimentar os turbilhões da libido, esquivavase manhosa desse cara aqui, amigo de um tesudo comensal brasileiro. Desconfiavam de que eu fosse espião? Eu bem que gostaria. Como o engenheiro meu amigo conseguiu esconder de mim essa história pelo jeito já veterana em sua vida? Um quase mulato entregando-se à carne branca do Norte. Tive um calafrio só de pensar que, depois dali, não provaríamos mais das surdas promessas cultivadas em silêncio por nós dois. Ele possuía o pau tatuado e o entregaria apenas à turma secreta de alemães. Era uma ONG da devassidão? A abelha parecia um mimo dos mais instigantes. Aliás, eu nunca vira uma abelha tão grande, pois o meu amigo doava à seita novamente uma ereção faltando pouco para ser completa. Seu prepúcio anunciava um tom ainda mais mestiço do que a face e mesmo seus braços. O prepúcio dos mestiços constituem a parte mais escura deles. Nunca pensei ser tão apaixonado por esse amigo moreno. O pentelho dele era espesso, feito a juba de um leão mulato. Em seus pêlos pubianos eu poderia me perder como num mato cerrado. Bastaria me lançar em vôo cego na intenção de abusar de suas delícias. Mas como não queria perder sua amizade, fui copiando justamente em cima da falta de sua pele as nervosas linhas de sua ingratidão. Mas para onde ia aquele submarino, que novas águas o levariam a destino nenhum? Eu tinha o meu sobrenome alemão, mas a gangue do navio não queria saber de minha raiz germânica. Afinal, meus antepassados chegaram aqui fugidos da miséria, da fome. Os atuais cidadãos alemães se envergonhavam dessa descendência bastarda e desviante como eu. O melhor era esquecê- la, voltando-se para os mestiços desse eldorado infame. O submarino ia, ia, e eu temia que fizessem de mim um es- cravo branco. Um sujeito apto para o serviço sexual, mas de terceira categoria —, a mais baixa. Tão mal remunerado que se alimentaria com a miserável ajuda extra dos hóspedes. Na certa viam em mim um dos últimos resíduos da tal diáspora germânica. E depois, eu tinha também sangue português e até índio. Eu era apenas em parte um descendente das ilusões do Norte loiro. Ainda por cima, eu não soubera vencer no Brasil. Era um sofrível remediado. Então pensei cabisbaixo no que fazer do resto da viagem. Se teria algum poder de escolha, pelo menos no âmbito privado. Sentei no chão. Sentei como um cachorro agregado sentaria na varanda da família. Não apenas sentei, deitei. Com bastante frio me enrodilhei todo e tentei adormecer. Quando estava a ponto de declarar minhas ânsias ao meu quase sarará, eis que tudo se esboroa e eu sem outro remédio senão o de aceitar esse namoro cativo pura frustração. Confesso que chorei um pouco ali enrodilhado. Entretanto, calculava que no dia seguinte iria à luta com o engenheiro ou sem ele, se é que haveria um dia seguinte dentro daquele navio de putarias para pouquíssimos sortudos. O meu amigo já não me olhava nos olhos. Amanhã ele continuaria assim com certeza, e talvez pedisse que no próximo porto me jogassem ao mar com mãos e pés atados. Naquele ventre de baleia já me sentia enterrado, com uma única perspectiva: a de dar certo ritmo à minha vergonha, já que destinação nítida eu não poderia alcançar. Com ritmo, tudo corria melhor. Se me concedessem alimento, muito que bem. Se não, tanto fazia. Voltaria à minha realidade sonífera para atuar nos meus próprios pesadelos, criando verdadeiros filmes de horror. A minha tristeza pelo desamor do meu amigo me deixara despeitado e lasso. Em qualquer eventual convocação a alguma atividade humana, o meu corpo se encolheria para se esconder.
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